sábado, 17 de fevereiro de 2018

Reflexões de Momo

Lá pelas minhas 6' Série, quando fazia o ginásio num colégio ali na Baixada da Égua, Zona Sul de São Paulo, tinha um professor muito chato, muito chato mesmo.
Desde que pus os pés em Olinda tenho me lembrado muito dele e de algumas passagens que vivenciei durante vários anos de aula com ele e pra variar feito algumas reflexões.
O fato é que além de chato, ele era ultra-autoritário e não tinha tino nenhum com qualquer aluna ou aluno, na época eu achava ele velho, eu tinha 11 e ele devia ter uns 40 e poucos anos e ficava realmente possesso com qualquer bagunça ou falatório durante a aula, principalmente da Turma do Fundão.
Como era costume à época, ficávamos inventando milhares de apelidos para o tão querido professor, ele ficava irritado com todos.
O fato é que em algum momento, algum aluno soube que o tal professor era Pernambucano e ele passou a ser chamado de "Boneco de Olinda".
Em SP, naquela época havia (ainda há) um preconceito gigantesco com quem é de fora, principalmente o povo Nordestino e usar termos perjorativos era bem normal, hoje, depois de mais de uma década fora daquela babilônia, eu percebo claramente.
Soma-se à isso o fato de que também era muito comum todo tipo de zoação, humilhação e muitos socos e pontapés entre os alunos nos colégios públicos, não tínhamos a mínima noção do que hoje chamam bullying e a lei era do quem pode mais chora menos.
Incrível como normalizamos os preconceitos sem nem nos dar conta, mas voltemos ao professor que em determinado dia, realmente cansado de ser chamado daquela forma, um dia entrou na sala de aula e escreveu na lousa com letras gigantes: "BONECO DE OLINDA".
A classe ficou em silêncio, ele estava realmente com uma cara de furioso, uns poucos risos de desafio ainda ecoaram da turma do fundão antes que ele fizesse uma pergunta:
- Alguém aqui na sala sabe o que é um Boneco de Olinda?
Silêncio sepulcral.
Não vou me lembrar as palavras exatas dele, mas lembro do sermão, nunca vi ele tão calmo na vida, contou a história dos Bonecos Gigantes, contou muito sobre o carnaval de Olinda, levou algum livro com umas fotos pra mostrar o boneco gigante, enfim, deu uma puta escovada na gente.
Explicou a magia dos Bonecos em Olinda e disse que ele se sentia muito honrado em ter este apelido porquê em Olinda não é qualquer pessoa que se torna Boneco Gigante.
Eu achei massa o tipo de sermão, ele era professor de geografia e no final das contas percebo que em 4 anos de aulas com ele, aquele dia foi a melhor lição que ele deu.
Foi excelente porquê naquele dia ele conseguiu quebrar em mim uma grande barreira, mas apesar de toda a explicação ele continou sendo um professor chato pra caralho, insuportável mesmo e cada vez mais autoritário.
Embora alguns moleques ainda o chamassem de 'Boneco de Olinda' acabamos inventamos outro apelido pra ele, nem lembro qual, mas sei que este professor se tornou o inferno na terra, até que lá pelo final do ano letivo da 7' Série ele não aguentou as provocações e saiu no soco com 3 alunos ao mesmo tempo, dentro da sala de aula. Eu que já era ninja na época e pulei fora da minha carteira antes que os 4 caíssem por cima de mim, foi muito doido este dia.
Saldo final é que os alunos foram expulsos do colégio, acho que só um continuou estudando lá, mas perdeu o ano letivo.
No ano seguinte o professor ainda teve novos problemas com outros alunos até que em algum dia o carro dele apareceu com os 4 pneus furados e com a pintura toda riscada. Isto foi no ano em que concluí a 8' Série e eu já estava com 13 anos, maduro e preparado para enfrentar o Colegial, gostei tanto do Colegial que eu demorei nove anos para concluir saporra.
Hoje faço algumas reflexões sobre isto:
A mais importante e assustadora é perceber o quanto o preconceito está arraigado em SP e a gente nem se dá conta, mesmo entre a galera que tem uma postura mais libertária ainda existe um série de preconceitos que nem se percebe, eu ainda devo ter alguns deles mas ter saído de SP me deu a oportunidade de perceber isso de fora, de outro ponto de vista, sou grato por isso!
A segunda reflexão é ver o quanto este clima de intimidação, agressividade e cultura de preconceitos e zuação entre a molecada no colégio foi danoso psicológicamente para várias amizades e para mim também, claro, tanto que hoje ainda penso profundamente sobre isto.
Foram milhares de horas de aula e recreios perdidos, com apelidos escrotos, piadas sobre a aparência, a cor da pele, o tipo de cabelo, se era muito magro, se era muito gordo, se era muito preto, se era muito branco, e quem tinha nascido fora de SP sofria isso tudo em dobro, tudo era motivo para piada e a qualquer instante poderia virar cascudo e a qualquer instante poderia virar surra ou coisa pior.
Eu tive poucos apelidos na época do colégio, o que pegou mesmo foi 'Magrão' que até hoje é usado pelas amizades antigas, os apelidos não me intimidavam muito então geralmente os moleques queriam me bater mesmo, tomar o lanche, essas paradas, aí eu tinha que brigar porquê meu pai dizia que se eu apanhasse na rua, iria apanhar em casa de novo, aí eu tinha medo de apanhar do meu pai, né, porquê já tinha visto ele batendo num irmão meu e não foi nada legal.
Por isso eu ficava feliz quando chegava um aluno de outro estado, porquê assim os moleques paravam de me zuar por umas semanas e eu podia ficar no meu canto sossegado.
Que bom que o ser humano tem capacidade de evoluir, que ruim que nem todos perceberam isso ainda.
A terceira reflexão é que estando em Olinda eu vi e vivi um pouquinho deste real encanto do Homem da Meia Noite, ouvi algumas histórias e vi dezenas de Bonecas e Bonecos Gigantes, teve um dia do Carnaval em que houve um encontro com todos eles e era justamente o Calunga que vinha abrindo o cortejo de frevo.
Então, realmente o professor estava certo, os Bonecos Gigantes são festejados , reverenciados e cultuados aqui, é uma loucura, a galera sobe e desce as infinitas ladeiras daqui carregando e frevando este Boneco que pesa mais de 40 quilos, não sei como conseguem.
Isto me leva à última reflexão importante, o tal professor nunca deveria ter sido chamado de Boneco de Olinda, este apelido é uma homenagem muito grande pra um cara tão escroto como ele.
Fim.
'O Estudo é a luz da vida, não estude, poupe luz!'
- citação preferida do ginásio nos fins dos '80.

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